quinta-feira, 27 de maio de 2010

DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINTADE

(Jo 16,12-15)


Para muito além da narrativa do evangelho de hoje e das diversas possibilidades interpretativas que ele nos possa oferecer, somos desafiados a refletir sobre uma verdade contundente da nossa fé, que nos interpela a todos, continuamente. Trata-se do dogma da Santíssima Trindade. Definitivamente, este não é um tema fácil de ser abordado e de ser compreendido, pelo menos, no que toca à nossa inteligência racional. Todavia, acredito que, se formos capazes de deixar de lado a nossa tentação de buscar sempre o "por quê" de tudo e, diferentemente, focar nossa atenção no "para quê", com certeza poderemos enxergar uma dimensão marcadamente pedagógica e enormemente instrutiva, na festa da trindade que hoje celebramos. Nessa perspectiva, a trindade nos faz 3 apelos fundamentais, quais sejam:
1º) O apelo da integração, da comunhão, da unidade: São três pessoas distintas, numa única natureza divina, revelando-nos que Deus é comunidade.
Isso nos aponta para as conclusões a que muitos estudiosos e pesquisadores acerca do ser humano, já nos disseram, nesses últimos tempos: "O maior desejo do homem, quer ele saiba ou não, é o desejo de unidade, de comunhão, de integração". Afinal, fomos feitos não apenas para viver, e sim, para conviver; não somos auto-suficientes e necessitamos, o tempo inteiro, do complemento uns dos outros, da troca, da convivência, da interação. E esta dimensão comunitária da vida humana vê-se reforçada radicalmente na imagem da trindade, à medida que o nosso Deus faz-se três em um só. Este é um forte apelo à consciência da inseparatividade. Não somos separados de nada e de ninguém. Na vida, tudo está relacionado com tudo e todos com todos, de tal forma que, se não estivermos atentos a isto, poderemos colocar tudo a perder, uma vez que já está mais do que provado que é impossível a alguém ser feliz sozinho.
Sendo assim, resta-nos observar as diversas etapas que se fazem necessárias para que alcancemos este ideal de unidade tão almejado. Vejamos:
Primeiro, devemos buscar construir unidade conosco, de cada um para consigo mesmo. Trata-se de fazermos as nossas "bodas internas"; reconhecer as nossas múltiplas dimensões e procurar integrá-las; desenvolver os nossos muitos potenciais e, ao mesmo tempo, reconhecer os nossos limites, aceitando-os e aprendendo a conviver com eles. Trata-se, também, de acolher o que se encontra em conflito dentro de nós: pensamentos, sentimentos, desejos, tensões, etc. Enfim, fazer as pazes com as nossas imperfeições.
Segundo, devemos buscar construir unidade com o nosso meio-ambiente, ou seja, aprender a cuidar do universo em que habitamos, da nossa casa comum que é o planeta terra. Trata-se de um apelo ecológico profundo e muitíssimo atual. Afinal de contas, nunca a vida na terra esteve tão ameaçada como agora. E as consequências da interferência nociva do homem, no âmbito da natureza, estão aí, cada vez mais graves. Só não vê quem não quer.
Terceiro, devemos construir unidade de cada um de nós com o outro, com as pessoas em geral. Como dizia São Paulo: "Somos membros de um mesmo corpo". Portanto, não há nenhuma razão para nos sentir separados das pessoas e, menos ainda, para viver como se os outros não existissem. Estamos o tempo todo implicados uns nos outros. Aliás, neste particular, não existem dois lados, o meu e o dos outros. Todos os lados são o mesmo lado, são o meu lado. Logo, o que acontece de mau ou de bom a um de nós, mais cedo ou mais tarde, chega a todos nós. Trata-se aqui, da necessidade de cuidarmos bem uns dos outros. Só assim, estaremos cuidando, verdadeiramente, de nós próprios.
Por último, criar unidade com Deus. Trata-se de reconhecer e acolher em nós, a nossa dimensão transcendental, infinita, divina. Afinal, somos maiores e melhores do que somos. Deus é algo que não pode não ser e a consciência dessa verdade é, fundamentalmente, a diferença que pode fazer a diferença em nossas vidas.
2º) O apelo da diferenciação, da distinção, da individualidade: Um Deus que é um, sem deixar de ser três. Quer dizer: uma só natureza divina, sem deixar de ser três pessoas distintas.
Eis, aqui, o grande desafio da vida humana: viver a comunhão, sem perder a individualidade; viver o que é de todos, sem deixar o que é nosso, o específico de cada pessoa. Aliás, somos todos únicos e exclusivos. Não há ninguém igual a ninguém. Portanto, neste particular, não temos o direito, nem o dever, de copiar quem quer que seja. Deus nos fez irrepetíveis e, neste prisma, insubstituíveis. Assim, quanto mais diferentes formos, mais iguais e mais parecidos nos tornamos e, desse modo, mais fiéis à nossa vocação original. Cada um de nós tem um caminho a seguir, uma palavra a dizer, uma tarefa a realizar, uma missão a cumprir. E isto, nenhuma outra pessoa poderá fazer em nosso lugar, por mais que nos seja próxima e esteja intimamente ligada a nós.
Trocando em miúdos, este é, por exemplo, um dos maiores desafios que se apresentam para o casamento, na atualidade: não permitir que a união do casal anule a dimensão individual dos respectivos cônjuges. Se isto acontece, mais cedo ou mais tarde, a relação se torna insustentável. Em outras palavras, o desafio para ambas as partes, é aprender a ser para o outro, sem deixar de ser para si mesmo. Inclusive, o amor ao outro é sempre a capacidade real de aceitá-lo na sua diferença, naquilo que é o seu específico, na sua individualidade. Ao contrário, se amo uma pessoa pelo fato dela ser para mim, tão somente, o que quero e espero dela, na verdade, amo a mim mesmo e a mais ninguém. Aliás, na sociedade atual, cada vez menos, as pessoas estão dispostas a sacrificar sua vida pessoal. E este é um dos aspectos positivos dos nossos tempos: o resgate da individualidade (diferente do individualismo, que é, por assim dizer, a patologia da individualidade). Trata-se, em suma, da arte de saber unir e separar, identificar e desidentificar, entregar e resgatar, ir e voltar, em tudo na vida.
Ainda, seguindo este raciocínio, num nível mais abrangente, este é, também, o maior drama dos países que adotaram o totalitarismo de Estado (China, Coreia do Norte, Cuba...). Em todos eles, salvaguardando as especificidades de cada um, não há espaço para o desenvolvimento da subjetividade, da diferença. O Estado, via de regra, é quem decide como as pessoas devem viver, o que devem fazer e, às vezes, até mesmo, o que devem vestir e comer. Por esse pecado, creio eu, é que todos os regimes totalitários ainda existentes, encontram-se, irremediavelmente, condenados ao fracasso.
3º) O apelo da amplitude, da evolução e dinamicidade da vida: Um Deus que é, simultaneamente, três pessoas distintas, sem deixar de sê-lo, concretamente situado, em cada momento da história.
A trindade nos ensina que o nosso Deus é um Deus que evolui no tempo e no espaço. Ou seja, Ele sabe ser Deus para cada momento distinto da história do mundo e dos homens. Assim, quando o mundo precisa de um Deus-Pai-Criador, Ele se apresenta como tal; quando o mundo necessita de um Deus-Filho-Redentor, lá está Ele, em carne e osso, na pessoa de Jesus Cristo. E, por fim, quando necessitamos da sua presença permanente em nós, na qualidade de um Deus-Espírito-Consolador, Ele nos oferece o seu Espírito Santo. Nessa perspectiva, a trindade apresenta-se para nós como um Deus dinâmico, que evolui na nossa evolução; atento à caminhada do seu povo e sempre capaz de responder com indiscutível atualidade, aos atuais desafios da história como um todo, e às circunstâncias bem concretas de cada ser humano, em particular.
Creio que, a partir disto, podemos deduzir que a existência trinitária de Deus é, para todos nós, certeza e garantia da sua presença contínua em nossas vidas, respeitando-nos e acolhendo-nos, incondicionalmente, do jeito que somos e nas diferentes circunstâncias que nos acompanham a cada instante, sejam elas boas ou ruíns, positivas ou negativas, divinas ou diabólicas. Nada disso importa. Deus é Deus e pronto: a presença mais antiga no universo e, ao mesmo tempo, a mais recente de todas as presenças, 'novinha em folha'. Um Deus que sempre soube ser diferente (trinitário) e, isto, talvez, com o único propósito de nos acolher, amorosa e inteiramente, nas nossas diferenças. Portanto, nesta imensa grandeza trinitária de Deus, cabemos todos nós, com tudo que temos e em tudo que somos, ontem, hoje e sempre. Quando caminhamos e quando paramos, quando acertamos e quando erramos, quando brilhamos e quando fracassamos... não importa o que nos aconteça agora ou o que nos tenha acontecido no passado. Importa-nos saber, simplesmente, que Ele está aqui e lá.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

DOMINGO DE PENTECOSTES
(Jo 20,19-23)

1. A primeira cena do evangelho de hoje, diz respeito ao sentimento de medo que toma conta dos discípulos ("...estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam..."). Ora, o medo é, sem dúvida, a condição em que tem vivido a humanidade inteira e cada pessoa em particular. Podemos até dizer que nossa vida, via de regra, tem sido uma espécie de ilha cercada de medo por todos os lados; medo da doença, da solidão, da pobreza, da velhice, do desamparo, dos assaltos, de bichos, de fantasmas, da morte... medo de tudo. Assim sendo, o medo, do ponto de vista do evangelho, apresenta-se como o primeiro grande obstáculo para a chegada do Espírito Santo em nós. É, por assim dizer, o contrário mesmo da própria fé, como indagava Jesus aos discípulos: "homens de pouca fé, por quê têm medo"?
Neste sentido, o primeiro passo a ser dado em busca da superação deste obstáculo concreto, talvez, seja o reconhecimento e aceitação dos nossos medos como coisa nossa, como algo que nos pertence e, como tal, não pode ser, jamais, ignorado ou negligenciado por nenhum de nós; ou seja, não devemos viver como se os nossos medos não existissem. Afinal, na maioria das vezes, aquilo que mais tememos é aquilo de que mais temos necessidade.
Num segundo momento, uma vez conhecidos os nossos medos pessoais, precisamos saber se são reais ou fictícios; se têm fundamento ou se constituem, apenas, frutos da nossa imaginação. Trata-se aqui, de fazermos uma triagem, um discernimento crítico e criterioso, um "enxugamento" dos nossos medos, reduzindo-os ao máximo. Isto, tendo em vista o fato da nossa mente gostar muito de alimentar temores imaginários e, ainda, o quanto nossa imaginação exerce uma forte influência sobre nossa vida e a forma como agimos.
Em terceiro lugar, devemos enfrentar nossos medos, não deixar que nos paralizem. Isto significa dizer que não podemos deixar de fazer o que temos de fazer na vida, por causa dos nossos medos. Esta é uma maneira de falar que precisamos ter coragem. Entretanto, ter coragem não é não ter medo, e sim, fazer o que tem de ser feito, apesar do medo. Portanto, a coragem não é, em nenhum momento, a negação do medo; é, antes, a consciência da sua presença real, acompanhada da capacidade de ultrapassá-lo. Trata-se da necessidade de sermos, cada vez mais, senhores e senhoras de todas as nossas ocorrências, inclusive dos nossos medos. Aliás, se formos fazer uma análise mais profunda, perguntando-nos sobre o que tememos de verdade ou sobre o que, de fato, podemos perder, logo concluiremos que não há nenhuma razão maior que justifique o nosso medo. Afinal, o que podemos perder na vida de tão importante, senão, apenas, ilusões e nada mais?
Um quarto e último passo que podemos dar em busca de superação dos nossos medos é, sem dúvida, procurar, de uma vez por todas, o caminho do auto-conhecimento. Sabemos hoje que, em geral, nossos medos nos revelam um profundo desconhecimento sobre nós mesmos. Sendo assim, conhecer-nos mais e melhor constitui-se o remédio mais eficaz contra todo tipo de medo que nos possa incomodar. Jesus Cristo já nos dizia para não temermos os que matam o corpo, mas nada podem fazer contra a alma. Ou seja, ninguém jamais poderá fazer nada de mal contra nós, ainda que nos mate, pois a vida pertence a Deus e somente a Ele. O mesmo Jesus nos falava: "quanto a vós, até os cabelos de vossa cabeça estão contados". Ora, será que pode existir algo mais insignificante do que um fio de cabelo da nossa cabeça? Entretanto, até disso, Deus cuida. Portanto, se nos conhecemos bem, na condição de filhos muito amados de Deus, destinatários de todos os cuidados divinos, certamente substituiremos o temor pela confiança. Doravante, confiemos e não temamos.
2. O evangelho, em seguida, nos mostra que o segundo grande obstáculo à chegada do Espírito Santo em nós, é a ausência de paz, a agitação, a correria, o estresse... ("Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: a paz esteja convosco"). E, logo à frente, o evangelho continua: "novamente Jesus disse: 'a paz esteja convosco'. Assim como o Pai me enviou, eu também os envio".
Curiosamente, Jesus deseja, por duas vezes seguidas, a paz aos seus discípulos e, somente depois, é que os envia à missão. Assim sendo, podemos facilmente concluir que, se não estivermos em paz, não poderemos ser enviados, não teremos condições de cumprir a nossa missão, de realizar nossa tarefa no mundo. Entretanto, a paz oferecida por Cristo, não é uma pura e simples ausência de conflitos; é, antes, uma meneira toda especial de lidar com eles. Nisto, vemos que a paz de Cristo é bem diferente da paz do mundo, conforme Ele mesmo nos assegurou, quando disse: "deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo". E uma das provas disto, é que os díscípulos nunca mais tiveram sossego na vida, depois de terem recebido aquele anúncio de paz. Logo, a paz de Cristo, a verdadeira paz, não é algo que se percebe, necessariamente, fora de nós, e sim, uma qualidade interior, uma conquista da alma.
Nessa perspectiva, de nada adiantarão os nossos esforços em busca de paz, se não tivermos um coração apaziguado, se não tivermos uma certa ordem em nosso mundo interior. Sabemos que há muita agitação, muitos conflitos dentro de nós; são pensamentos, sentimentos, desejos, instintos, paixões, etc., geralmente, distintos e contraditórios, que se chocam entre si e insistem em nos levar de um lado para o outro da vida, fazendo-nos perder de nós mesmos. Aí é que se dão as maiores guerras, maiores e mais arrebatadoras do que as do Irã contra o Iraque, ou da Palestina contra Israel. Aliás, todos estes conflitos externos que vemos espalhados mundo afora, as guerras que tanto repudiamos, não são outra coisa, senão, a extensão das perturbações que vivenciamos por dentro, no nosso universo interior. É lá que tudo se inicia. Logo, se páram dentro, páram fora, mais cedo ou mais tarde.
3. O terceiro obstáculo à chegada do Espírito Santo em nós, ainda segundo o evangelho de hoje, é a nossa ignorância sobre pecado e perdão ("Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos").
Com isto, Jesus nos lembra que, quando paramos nos pecados, eles também nos paralizam. Porém, quando perdoamos, nos permitimos avançar e conseguimos viver, apesar deles. Em outras palavras, só podemos receber o Espírito Santo em nós, se formos capazes de reconhecer e aceitar a nossa condição própria de pecadores; ou seja, de não alimentar ilusões quanto à nós mesmos. Trata-se de começar a viver pelo que somos, por inteiro, sem reservas, sem falsas vergonhas, sem lamentos e sem pesares. Como já dizia alguém: "a minha sabedoria está em aceitar não ser o santo que eu gostaria de ter sido, aceitar o fracasso que fui ou que sou".
Nesse sentido, podemos dizer que pecar ou não pecar, não é o mais importante. Afinal, todos pecamos. O fundamental é nunca deixar de saber que tudo tem um propósito, que nada existe ou acontece em vão, inclusive os nossos pecados. Por mais incrível que pareça, o mundo precisa de cada um de nós, como cada um é. O universo necessita dessa variedade de comportamentos, dessas atitudes opostas, desses muitos conflitos éticos, dessas opiniões e vivências distintas. Se o mundo nos quisesse outros, nos teria feito outros. Mas, não. Fez-nos assim, do jeito que somos. E não pensem que isto é conformismo ou acomodação; muito pelo contrário: é caminho de evolução.
Desse modo, podemos afirmar que nossos pecados não constituem e, nunca constituíram, nenhum impedimento ou obstáculo à presença e atuação do Espírito Santo em nossas vidas. Antes, reconhecê-los e aceitá-los, é ser capaz de oferecer ao Espírito Santo um material humano verdadeiro, sem falsificação, uma matéria prima de primeira qualidade, na qual Ele (O Espírito) poderá soprar sem qualquer reserva. Pois, na verdade, Deus trabalha conosco, sempre a partir do que somos e somente assim; levando em conta os nossos limites, respeitando-os e possibilitando-nos ultrapassá-los, permanentemente, se assim o desejarmos. Oxalá que o desejemos.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

sábado, 31 de outubro de 2009

DOMINGO DE TODOS OS SANTOS (Mt 5,1-12a)

1. As bem-aventuranças do evangelho são uma promessa de felicidade, de plenitude e de santidade.
Em hebraico, bem-aventurado tem o sentido de 'estar em marcha', 'estar a caminho'. Nesta perspectiva, poderemos traduzir a sequência do texto da seguinte maneira: em marcha os pobres, em marcha os humildes, em marcha os que choram, os que têm fome e sede de justiça, etc. Isto significa dizer que o bem-aventurado do evangelho é aquela pessoa que sempre consegue dar um passo à frente, a partir do lugar em que se encontra. Por outro lado, a pessoa infeliz é aquela que insiste em ficar parada, estagnada, no lugar e na situação em que se encontra. Em outras palavras, o ser humano feliz não é aquele que não tem problemas na vida, e sim, aquele que não pára nos problemas que tem e que sabe continuar, apesar deles. Em hebraico, por exemplo, a palavra doença quer significar andar em círculos, estar preso, estar no inferno, fechado em suas circunstâncias, sofrimentos, pensamentos e emoções. Por isso mesmo, a bem-aventurança é apresentada como a capacidade de dar um passo a mais.
Aliás, esta é, também, uma bela definição de espiritualidade: dar um passo a mais, a partir do lugar onde se está. Deste modo, não temos nunca porque nos julgarmos uns aos outros. Como dizer que alguém caminhou até muito longe e que o outro apenas começou sua caminhada, se não podemos medir todos os passos que ambos deram? Às vezes cremos que alguém está muito longe e, na realidade, ele quase não andou. Outras vezes, temos a impressão de estar apenas começando e, na verdade, já tivemos necessidade de caminhar tanto. O que importa é este passo a mais que nos faz sair do inferno, do sofrimento, da prisão. Portanto, cada uma das palavras do evangelho de hoje, é um convite para que nos recoloquemos em marcha, a partir de nossas lágrimas, a partir do caminho que já percorremos e dos lugares onde já chegamos. Há ainda muito a se caminhar.
2. "Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus".
Naturalmente, a expressão 'pobres em espírito' contrasta com a idéia de 'pobreza material', dela distinguindo-se. Ou seja, no entender do evangelho, ser rico ou ser pobre, não é somente uma questão de ter ou não ter bens materiais. Esta é uma questão muito mais complexa do que se pensa. Aliás, podemos encontrar muita miséria no meio dos ricos e muita riqueza no meio dos pobres. Sendo assim, ao falar de pobres em espírito, o evangelho deseja que eliminemos o perigo de uma visão simplista, reducionista sobre o assunto. Sabe-se que no tempo de Jesus, os ricos não eram apenas aqueles que possuíam riquezas materias, mas eram também os chamados fariseus que diziam possuir a verdade, que possuíam o conhecimento, que se acreditavam justos e que se tomavam por modelo da humanidade. Eram estes os ricos contra os quais Jesus se batia. Os que pretendiam ter, não somente, coisas materias, mas também riquezas intelectuais e espirituais; pretendiam ter a verdade e ter Deus.
É preciso, portanto, que nos tornemos pobres, 'pobres em espírito'. Isto é, que nos tornemos pobres de tudo o que sabemos. Aqui, não se trata de negar o que sabemos, trata-se de relativizar o nosso conhecimento. Tomarmos consciência que o que sabemos não é tudo, que o que sabemos não é grande coisa diante de tudo o que nos resta descobrir. Esta é a atitude que se espera do verdadeiro cientista, do autêntico sábio. Eles sabem o que sabem. Mas, sabem, também, que o seu saber é limitado e o que eles não sabem é infinito.
No que se refere ao universo religioso, por exemplo, podemos aplicar tal princípio da seguinte forma: todas as vezes que nos encontrarmos com pessoas pertencentes a religiões diferentes da nossa, devemos dizer: "Eu sei o que sei, eu sei o que eu conheço de Deus, mas sei que o que conheço dele é limitado e o que eu desconheço é infinito. E é, precisamente, este infinito que temos de descobrir juntos. Não podemos nos compreender só naquilo que conhecemos. Só podemos nos compreender bem naquilo que, juntos, ainda não conhecemos e que podemos buscar conhecer". Ora, para falar desta maneira é necessário que sejamos 'pobres em espírito', que é o contrário daquele que se acha proprietário de Deus, proprietário da verdade.
Logo, ser 'pobre em espírito' é não ter apego a quaisquer riquezas de caráter não-material ou espiritual, tais como: idéias, sentimentos, cultura, religião, etc. Caso contrário, correremos o risco de nos afogar em uma espécie de 'materialismo espiritual', muito comum nos tempos atuais.
Em suma, podemos dizer que a questão fundamental não reside em se ter ou não se ter as coisas, e sim, no modo como usamos o que temos e como buscamos adquirir o que não temos. Trata-se de encontrarmos a justa medida, o ponto de equilíbrio entre uma coisa e outra. Nas palavras de um místico contemporâneo: "Devemos aprender a usar o material de forma não materialista; aprender a imprimir espírito na matéria". É nisto que consiste o 'pobre em espírito' de que nos fala o texto evangélico.